No mês da Consciência Negra, compartilho a conversa potente que tive com uma das principais atrizes negras de destaque na teledramaturgia brasileira: Isabel Fillardis. Ela nos conta sobre os desafios de ser uma mulher negra e atuar em diversas frentes, sendo atriz, cantora, compositora, mãe atípica – Jamal, um de seus filhos desenvolveu a Síndrome de West ainda na infância (doença caracterizada por episódios de epilepsia que impactam no desenvolvimento) e que, em determinado momento, exigiu que ela pausasse a carreira para se dedicar exclusivamente à maternidade. Além de Jamal, Isabel é mãe de Analuz e Kalel.
Isabel também foi empreendedora social fundou duas organizações vanguardistas: A Força Do Bem e a Doe seu Lixo, há mais de 10 anos. Recentemente participou da novela Amor Perfeito, que certamente entrará para a história como uma das primeiras produções da TV brasileira com 50% do elenco formado por pessoas negras.
Podemos dizer que Isabel é uma vitoriosa! Com 30 anos de carreira, a atriz coleciona sucessos em seu currículo profissional, afastada da tevê para tratar um câncer na língua e uma doença dermatológica chamada Líquen Plano Pigmentoso. Curada e aos 50 anos, volta com força total às novelas e teatro, provando a potência da mulher negra.
Liliane Rocha: Você é uma atriz negra que é um fenômeno da TV brasileira. Vanguardista, é a primeira mulher negra que eu me recordo de ter visto na TV. Você pode falar um pouco para a gente sobre a sua trajetória?
Isabel Fillardis: Me tornar artista, digo artista e não atriz porque ao mesmo tempo que eu me tornei atriz, também me tornei cantora, foi quase simultaneamente que essas duas faces se tornaram públicas. Quando eu fiz parte das Sublimes (grupo musical), por exemplo, estava trabalhando, estudando em estúdio durante um ano antes de fazer a novela Renascer.
À época eu era modelo e recebi o convite para o teste da personagem Ritinha na novela, passei. E quando a novela começou, o videoclipe das Sublimes foi veiculado no Fantástico. Foi ali que explodiu a atriz e a cantora ao mesmo tempo. De 1991 a 1994 foram anos de muito trabalho e foi artisticamente muito rico. Trabalhei muito e depois disso precisei optar entre ser atriz ou cantora, já que a demanda como atriz estava impactando na fluidez do grupo. Aí eu abri mão de fazer parte das Sublimes e fui trabalhar só como atriz e depois disso fui para o teatro musical.
Voltei a cantar depois dos percalços pessoais vividos, falei “preciso voltar a cantar”. E aí, antes da pandemia, passei a contar com o Tony Prada, meu empresário musical, fazendo a gestão da minha carreira de cantora e retomamos. Veio a pandemia, aquela loucura toda. E cá estamos no meio desse caminho.
Você também já foi empreendedora social, por um determinado período esteve à frente de organizações sociais? Me conta um pouco mais como foi?
Essa outra atividade veio do ser humano, desse lugar de você querer mudar as coisas, de estar preocupada realmente com o que está acontecendo à sua volta. Eu já era mãe, então eu pensava: “Nossa que mundo é esse que está vindo aí e que as pessoas não estão se dando conta?”
Foi uma estrada longa de pelo menos 10 anos até conceber, criar, executar o projeto. Foram 10 anos de trabalho, tanto na ONG A Força Do Bem como na Doe seu Lixo, destinadas respectivamente para as pessoas com deficiência e para geração de emprego e renda para catadores, trabalhando com resíduos sólidos, que era uma coisa muito inusitada na época. As pessoas não se atentavam e nem se falava em resíduo sólido, era lixo reciclável.
A empreendedora social veio desse lugar. Primeiro tive a ideia de fazer a Doe seu lixo e depois A Força do Bem, pela vivência com meu filho Jamal. A Força do Bem surgiu dessa vontade de querer entender que universo é esse, das mães atípicas, das pessoas atípicas e vendo essa realidade. Quando eu fui buscar entender e me diziam que não tinham números exatos, eu compreendi o tamanho da problemática.
Então, eu quis contribuir e devolver para a sociedade, porque eu sempre me achei privilegiada nesse lugar, nesse recorte. Eu posso dar, com muito trabalho, muito esforço mais qualidade de vida para o meu filho. E tem muita mãe que não pode, não tem condições, que precisa deixar o emprego. Como é que você cria, uma criança com deficiência com dignidade sem ter recurso financeiro? É tudo muito caro. Foi quando eu voltei meu olhar para essas pessoas, atuando para elas serem incluídas na sociedade de fato, para que pudessem ter direito ao trabalho, ter direito a acessibilidade, ao entretenimento. Hoje, a gente vê um caminho bom, mas ainda não é o suficiente.
Como foi começar a carreira tão jovem, aos 13 anos de idade, num contexto de sociedade que era ainda mais racista do que é agora?
Eu não tinha esse letramento, apesar de eu perceber que era somente eu ou uma colega nos trabalhos publicitários.
Eu não entendia o contexto geral de que eu era a menina preta numa novela das oito, a gente não conversava sobre isso, falar de racismo era algo maculado, você não podia tocar nesse assunto. Era uma coisa que a gente conversava muito baixinho. E nessas horas, a gente tem que dar graças a Deus dessa geração de 20 e poucos anos e da era da internet que permitiu essa globalização e o mundo todo pode falar desse tema. Naquela época eu não entendia nada. Eu vim a entender depois de muito tempo, até porque no colégio piorou, eu estudava em colégio particular e sofri racismo na escola. Ainda assim, eu não entendia como era essa nomenclatura.
Você é atriz, cantora, mãe de três filhos. Como que você consegue equilibrar todas essas tarefas?
Eu tenho uma rede de apoio. Não tem outra forma. Sem rede de apoio seria humanamente impossível. A minha rede entra quando eu não consigo dar conta e assim eu vou equilibrando. Vou tentando fazer planejamentos de curtos, de médio e de longo prazo. Sigo focando no curto e médio que entendo ser o ideal para ter uma vida equilibrada.
Você acabou de fazer a novela Amor Perfeito, com elenco composto por 50% de pessoas negras, um marco na teledramaturgia brasileira. Você acha que as coisas estão mudando para os artistas negros?
Acredito que sim, dependendo de quem estiver sentado na cadeira de decisão. Nessa novela, um dos roteiristas é um homem preto e o diretor artístico também, isso faz toda a diferença. É aí que a gente vê o poder da liderança. Eles propuseram fazer uma nova configuração baseada em pesquisa. Como é que esses homens, essas mulheres pretas, na década de 1940, no interior de Minas Gerais se apresentavam fisicamente, corporalmente, visualmente.
Então, eles tiveram que demonstrar que daria certo, a partir de uma pesquisa vasta que o Elisio Lopes Junior fez para que pudesse validar tudo aquilo que a gente queria propor, aquele colorido, os nossos próprios cabelos. E foram trazendo junto questões atuais num texto relacionado a 1940. Relação interracial, o amor preto acima dos 50 anos, e assim por diante. E foi um sucesso!
Tem alguma dica para quem está começando agora e quer se destacar num mercado onde quem lidera, ainda são, majoritariamente, pessoas brancas?
Estar capacitado, em uma agência de modelos confiável continua sendo uma premissa, porque muitas vezes você não vai encontrar uma liderança branca, aliada. Então, você precisa estar capacitado. Eu tive acesso a um livro sobre diversidade, chamado Diversidade: o poder da inclusão, de Sheree Atcheson, para o qual fiz a narração da versão para audiobook, e foi um descortinar para mim. Foi um letramento que eu tive vindo de uma mulher preta, do Sri Lanka. Ela conta no livro que teve o privilégio de ser educada e adotada por uma família irlandesa branca, que acessou bons colégios etc. Para mim foi um estudo, um intensivo no tema.
E conversando com o diretor da Associação Pacto de Promoção da Equidade Racial, comentei sobre o que aprendi com o livro e fui convidada a ser Embaixadora da instituição. Por isso, ampliar a sua visão é importante, diversificar o seu conhecimento. Às vezes, vem uma coisa nova, inusitada para você por esse caminho.
Segundo o estudo Diversidade, Representatividade e Percepção – Censo Multissetorial da Gestão Kairós de 2022, mulheres na liderança das empresas, no nível gerente acima, são 25% e negros 17%. A interseccionalidade mulheres negras despenca para 3% gerente acima. Você acha que essa falta de representatividade das empresas gera impacto no cinema e no audiovisual?
O Brasil é um país que gosta de copiar coisas, e não deveria ser assim, porque é um país que tem uma identidade e individualidade fora do comum. E no mercado publicitário, de entretenimento e afins, você, às vezes, precisa colocar uma lente de aumento, para entender que muitas coisas são feitas, como diz o ditado para “inglês ver”, e na realidade nada mudou. Está mudando, mas está mudando porque a gente está sendo persistente e exigindo nossos direitos.
O surgimento do conceito ESG veio para reafirmar isso. O que significa isso? Tem que ter pessoas pretas sentadas em várias cadeiras no Conselho, na construção do conteúdo, em posições de poder, de decisão. Essas pessoas precisam estar distribuídas, porque aí sim, a gente vai conseguir avançar. Precisamos de quem está nos bastidores, na tomada de decisão, quem está com a caneta na mão, precisamos de representatividade para podermos realmente avançar. Nós precisamos de líderes em vários lugares, líderes pretos, para promover igualdade racial em todas as áreas para fazer diferença. Assim, como foi com a novela Amor Perfeito, inclusão de fato!
Você se intitulou na entrevista com uma mulher negra, atriz, empreendedora, mãe atípica. Eu diria também 50+. Como é lidar com essa interseccionalidade?
Eu estou num momento de reflexão sobre isso, para ver de que forma que eu vou lidar com os meus próximos 50 anos. De que forma que eu quero viver? De que forma que eu quero lidar com a minha arte, como cidadã, o que eu quero fazer? Qual é a qualidade de vida que eu quero ter? Estou refletindo sobre isso e tomando algumas direções. Afinal, 50 anos não são 20, o corpo já é outro. A cabeça já está num outro lugar. Ao mesmo tempo, no momento social político do país, que eu escolhi e quero viver. Mesmo com toda a dificuldade, eu acho mais interessante, por mais difícil que seja. É tentar promover a mudança e a transformação do país que você é de origem. O Brasil precisa de pessoas como eu, de verdade, que possam atuar em todas essas frentes. Que possam falar para um grande público, que possam alertar, que possam incentivar, inspirar as novas gerações.
E dizer que é possível, que dá certo! Não é fácil, ninguém diz que vai ser fácil, mas é possível. Eu fico pensando nisso e estou exatamente nesse momento pensando de que forma que eu vou fazer isso, me priorizando, priorizando a minha vontade e o meu prazer. Hoje, eu preciso ser mais assertiva nas minhas escolhas, porque eu não tenho mais tanto tempo para errar. Isso não significa que eu não vá errar. Mas, pretendo errar menos, para que eu possa chegar mais rápido, mais feliz e com frescor nos meus objetivos. Então, hoje tem outras coisas que eu aprendi, que eu estou colocando em prática, como, por exemplo, abrir minha boca falar e me impor, dizer: “Não quero, isso não pode!”, com toda a educação do mundo, às vezes um pouco mais enfática, ou não. Dependendo com o que estou lidando do outro lado.
Já vivi muita coisa, tenho três filhos no mundo, já criei duas instituições completamente diferentes, vi realidades muito diferentes, diversas. Passei por muitos percalços emocionais, físicos, de saúde, que foram determinantes na mudança do meu olhar. Quando você passa por algo que pode interromper a sua vida, aí você se dá conta do que é realmente importante e de quais lutas quer lutar. Eu estou nesse lugar das minhas escolhas, os papéis que eu eventualmente venha a desempenhar como artista vão fazer diferença e isso já está começando a acontecer
Quais são seus planos futuros?
Na peça Abismo de Rosas, que estreou dia 3 de novembro, eu atuo com outros dois atores Emiliano D´Ávila e Vitória Strada, e desempenhamos vários personagens. Eu interpreto duas mulheres com vidas completamente antagônicas. Uma é casada e vive um relacionamento altamente tóxico e a outra é uma terapeuta que descobre que está se apaixonando por outra mulher à beira dos 50 anos. Então, são dois parâmetros. Por isso que eu disse que estava começando a mexer e a falar desse tema, a quantidade de mulheres que existe por aí e que se descobrem nessa fase da vida, que redescobrem sua orientação sexual, e que pode ser assustador.
Por isso, eu tenho conversado com algumas pessoas para entender e tentar trazer com a maior sensibilidade, delicadeza e respeito possível esse assunto, de como é que seria o caminhar dessa mulher, tudo dentro de uma comédia, dentro de um tom relativamente leve. É um gênero de comédia, mas ali nós vamos discutir questões sérias como relacionamentos tóxicos, machistas entre outras. Então, agora estou nesse desafio.
Para finalizar, tem algo que você queira falar, que acha importante trazer para esse bate-papo?
Só reforçar que quero poder criar e dar o melhor possível para os meus filhos, e para mim mesma antes de qualquer coisa. Se tem uma coisa que eu aprendi, uma nova dica, é você se priorizar mesmo. Não tem como você ser uma boa profissional, uma boa mãe, uma boa mulher, uma boa parceira, se você não estiver bem consigo mesma, saudável mentalmente, emocionalmente realizada, na medida do possível. Entendendo os altos e baixos que a mulher preta possa vir a ter e tem, mas se priorizar, se amar acima de tudo!